CONFERÊNCIA COM DOIS EX-COMBATENTES DA GUERRA COLONIAL

No passado dia 11 de Maio do corrente ano, a Escola EB 2,3/ S de Caminha recebeu, no âmbito da disciplina de História, a visita de dois ex-combatentes da guerra colonial portuguesa (1961-1974) que se prontificaram a esclarecer, durante uma das aulas da disciplina, todas as dúvidas dos alunos da turma C do 9º ano em relação a este período da história com implicações tão directas no nosso país.
Os convidados foram: Joaquim Saraiva Pinto, residente em Caminha e que prestou serviço militar na Guiné e João de Deus Ferreira Rodrigues, natural de Venade (Caminha) e que prestou serviço militar em Angola. Além de esclarecerem concreta e claramente todas as dúvidas dos alunos da turma, revelaram extrema simpatia e à vontade o que contagiou os alunos que se envolveram a corpo inteiro nesta conversa e colocaram todas as suas questões, que foram completa e prontamente esclarecidas.
Neste colóquio foram ainda narradas por parte dos convidados várias histórias e peripécias vividas ou presenciadas por estes, o que fez com que os estudantes fixassem os narradores e se esforçassem por participar e expor a sua opinião em relação a esta guerra.
Como o tempo não permitia uma conversa muito extensa, a palestra terminou após a aula acabar, tendo deixado um dos combatentes vários livros referentes ao seu batalhão e companhia, onde estão impressas todos os factos ocorridos na época do seu serviço militar em Angola; a informação neles contida foi “doada” à biblioteca da escola para futuras consultas e análises.
Por fim, salienta-se a importância de actividades como esta que confrontam duas gerações totalmente diferentes e que avivam nos alunos o gosto pela história mundial.
(Em anexo encontra-se a entrevista que uma aluna dessa mesma turma (Ana Maria Alves) fez ao seu tio: João de Deus Ferreira Rodrigues).

ENTREVISTA A UM EX-COMBATENTE DA GUERRA COLONIAL
(Angola, Guiné, Moçambique)

Nome: João de Deus Ferreira Rodrigues
Idade: 62 anos
Localidade: Venade
Local onde combateu: Angola

1- Em que ano foi para a guerra?
Fui para a guerra em 1969.

2- Quanto tempo lá esteve?
Estive lá dois anos (1969-1971).

3- Foi para a guerra ultramarina voluntariamente ou foi obrigado?
Fui obrigado.

4- Onde recebeu instrução militar? E em que consistiu essa mesma instrução?
Recebi instrução militar em Braga e Abrantes. Lá ensinavam-nos a “lidar” com armas, de modo a podermos manejá-las correctamente. Além disso, éramos submetidos a vários treinos para melhor nos prepararmos para a guerra.

5- Que família deixou em Portugal?
Em Portugal, deixei a minha mãe e as minhas três irmãs.

6- Como foi o momento da despedida?
A minha família não sabia. Resolvi fazer tudo às escondidas para evitar desgosto da separação. Pedi à minha irmã mais velha para levar a minha bagagem para o local onde trabalhava e disse à minha mãe e às minhas outras irmãs que ia novamente para a instrução militar.
Lembro-me que quando fechei o portão me desfiz em lágrimas e pensei: “Sair saio, entrar não sei se entrarei…”.

7- Como foi a viagem de ida? E a de regresso?
Em ambas as viagens íamos alojados no porão do navio (mas podíamos deslocarmo-nos livremente no barco); as condições de uma forma geral eram suportáveis: não era nenhum passeio agradável, mas também não era nada de muito sinistro. As condições da viagem foram semelhantes tanto na ida, como na volta (se bem que na viagem de regresso vínhamos muito mais felizes!).

8- Lembra-se do nome do barco que o levou e do que o trouxe?
Sim. O que me levou chamava-se Vera Cruz e o que me trouxe Niassa.

9- Que material precisava de levar?
Para lá levei roupa civil, roupa militar, escova dos dentes, pasta, um copo, uma gillete e sabão (salvo erro).

10- Quais foram as dificuldades (em termos alimentares, de água potável, de animais ferozes) que enfrentou?
A nível da água potável, esta era realmente escassa e como o clima era bastante quente, a água que levávamos no cantil esgotava-se rapidamente, pelo que tínhamos de arranjar formas para obtê-la: ás vezes, colocávamos um lenço branco em poças de água, por vezes cheias de lagartixas e de outros bichos, e apenas bebíamos o que passava para além do lenço; também cortávamos folhas de umas árvores bastante altas e bebíamos o líquido que delas escorria.
O clima era verdadeiramente quente, muito diferente do que estava habituado.
Em relação a animais vi alguns macacos, onças, leões e pacaças (bois), mas nunca fomos atacados.

11- Como eram as condições de vida (quotidianas) quando se encontravam em Angola?
No que cabe à alimentação, comíamos ração de combate (enlatados: paté, sardinhas, atum, …).
Em relação ao alojamento, estávamos dispostos em casernas dentro do quartel, em cada caserna dormiam cerca de 20 a 30 pessoas.
A nível de emboscadas, os negros nunca atacavam directamente: espalhavam armadilhas pelas zonas onde nós passávamos e estavam escondidos atrás do capim (erva branca e alta), atirando a qualquer momento.
A nível da higiene, as condições eram más, tomávamos banho em chuveiros, todos ao molho, e em termos de necessidades fisiológicas… é melhor não falar.

12- Como eram recebidos nas palhotas, aldeias?
Por onde passei, os negros mostravam-se indiferentes, aliás alguns até tinham medo de nós.

13- Qual era a função que exercia?
Era atirador.

14- Quando lá andou, sentia medo ou receio?
Não. Eram-nos dadas umas injecções que nos mantinham descontraídos e alegres: estávamos todos em fila indiana e a agulha era a mesma para toda a companhia de soldados.

15- Qual era o armamento utilizado?
Em relação ao armamento, destacava-se a G3 e a Mauser.

16- Matou alguém?
Sinceramente, não sei. Os negros estavam quase sempre escondidos e não os víamos, por isso disparávamos para a área onde estavam (eram verdadeiras rajadas). Mas corpo a corpo, tenho a certeza de que não matei ninguém.

17- Quais foram os momentos que mais o marcaram: pela positiva e pela negativa?
Os momentos que mais me marcaram pela negativa foram quando no dia 14 de Setembro de 1969, os negros nos prepararam uma armadilha a um dos nossos carros, morreram duas pessoas e houve diversos feridos (foram as únicas pessoas que morreram do nosso batalhão: o Filipe e o Nunes (ambos alferes).
Outro momento que também me marcou profundamente foi quando no dia 5 de Maio do mesmo ano levei um estilhaço na cabeça, provocado por uma granada. Fiquei bastante tempo em recuperação: vi a morte a olhos vistos!

Um acontecimento que me marcou positivamente foi aquele em que salvei a vida a uma jovem que tinha acabado de dar à luz. Tinha sido um parto difícil e a moça tinha perdido muito sangue, pelo que precisava de uma transfusão urgente. Eu tinha o mesmo grupo sanguíneo, por isso ofereci-me e tratei de procurar outro colega para fazer o mesmo. Dei sangue directamente (de corpo a corpo) e salvei a vida da jovem. Foi muito emocionante!

18- Como é que comunicava com a família e como geria as saudades?
Comunicava com a minha família através de aerogramas e de cartas. Uma vez acho que participei num “programa” onde dirigi algumas palavras à minha família (foi tudo muito rápido, mas estavam todas ao pé do rádio para me ouvir!).
As saudades eram difíceis de gerir, sentia muito a falta da minha família e da minha terra.

19- Lembra-se do seu capitão? Como era a sua relação com ele?
Lembro-me perfeitamente e nunca tenho deixado desaparecer o contacto entre nós. Chama-se Lagartinho Rodrigues e ambos tínhamos uma relação muito forte, éramos (e somos) muito amigos; aliás fui eu que passei muito do meu tempo lá a criar-lhe os filhos.

20- E a sua companhia, sabe identificá-la? Quantas pessoas faziam parte dela?
Sei pois. Éramos os Lagartos: companhia: 2459 e batalhão 2859. Ao todo éramos mais ou menos 200 pessoas.

21- Teve algum relacionamento amoroso por aquelas paragens?
Sim. Envolvi-me com uma rapariga mestiça chamada Joana.

22- Ficou traumatizado com esta experiência ou conhece alguém que ficou?
Não fiquei muito traumatizado, mas quando cheguei a casa, passei alguns meses muito agitado; o tempo que estive lá afectou-me muito o sistema nervoso.
Não conheço ninguém que tenha ficado seriamente traumatizado.

23- Tem participado em convívios entre ex-militares?
Sim. Anualmente vou a um convívio desse tipo, onde encontro antigos camaradas e até mesmo o meu capitão.

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